Chegar é nunca chegar

Acolhida é um conceito escorregadio. Aplicado ao contexto da imigração, assume posicionamentos diferentes segundo o contexto. Quer dizer, o imigrante não tem controle sobre como vai ser tratado nem acolhido no lugar de chegada, nem a acolhida depende unicamente da disposição (subjetiva, mas socialmente construída) da população local.

Há várias camadas, tanto estruturais —burocráticas, jurídicas, políticas—, quanto subjetivas —emocionais, normativas e simbólicas— que moldam a própria acolhida num determinado momento.

Acolhida, então, poderia significar um espaço fluído de relações de poder. Depende do contexto (tempo e espaço) e dos vínculos construídos social e institucionalmente.

In his imagination every migrant worker is in transit. He remembers the past: he anticipates the future: his aims and his recollections make his thoughts a train between the two. (John Berger, Jean Mohr, 1975, p.64)

Sem querer generalizar aspectos pontoais da experiência individual migratória, o processo de pesquisa-criação buscou indagar a ruptura da linearidade da narração temporal e espacial que sofre o imigrante na hora de sair de seu lugar de origem (por milhões de razões). O eixo X (tempo) e o eixo Y (espaço) nunca mais se encontram da mesma forma após partida do sujeito (Ver: John Berger, Jean Mohr, 1975).

A partir dessa irrupção da continuidade na experiência do imigrante, tentei reconstruir a sensação de familiaridade e estranhamento que articulam —de forma irregular e complementária— a chegada (ou retorno) do imigrante.

A incapacidade de controlar completamente o resultado do agenciamento e expectativa do imigrante está enquadrada nesse jogo entre familiaridade-estranhamento. Como revelar a estranheza da normalidade? O conceito Infrathin, acunhado por Marcel Duchamp (nunca definido, mas exemplificado pelo artista), representa o menor intervalo possível entre uma situação em desenvolvimento: a marca de pólvora numa parede após apertar o gatilho; a cadeira quente do ônibus.

Embora o intervalo determinado pelo infrathin esteja marcado pela imperceptibilidade, a mudança de altura das maçanetas (embora drásticas em relação ao conceituo) geram (idealmente) um estranhamento de um comportamento rotineiro, constituído pela socialização do gesto ou técnica cultural ligada com o objeto.

Outro conceito interessante é: heterotopias, de Michel Foucault. A palavra heterotopia vem da junção de hetero (diferente, outro) e topos (lugar):

Pois bem, sonho com uma ciência – digo mesmo uma ciência – que teria por objeto esses espaços diferentes, esses outros lugares, essas contestações míticas e reais do espaço em que vivemos. [...] os espaços absolutamente outros. (1984).

Ou também:

(...) uma forma de classificação espacial que valorizava a presença de múltiplas representações conflitantes em uma mesma área. Para Foucault, existiriam certos espaços que, devido à concentração de atores e de significados, seriam caracterizados pela inversão, suspensão ou neutralização da ordem oficial. (Ramos, 2009).

A porta é um objeto carregado de significado ao longo da história da arquitetura, religião e arte. Desde as implicações sociais de sua função mais básica (excluir e limitar o interior do exterior), até seu papel na assimetria da circulação do conhecimento no drama espacial doméstico.

A porta também assume um rol importante na constituição do espaço de acolhida essencial: a casa. As portas podem significar, metaforicamente: uma passagem, uma abertura ou fechamento de algum “capítulo” importante; uma possibilidade; um mistério (o que acontece atrás das portas fechadas). Um limite, início, final, limiar; em fim, as possibilidades associativas são amplas.

A sequência de portas representa uma construção espacial e infraestrutura simbólica que apresenta o choque entre as expectativas e a realidade do trajeto de vida do imigrante. As diferentes etapas (limiares e interstícios) formulam a sensação de trânsito constante que marca a psicologia do imigrante, marcada por “obstáculos” familiares que podem ser enquadrados como pontos de ruptura na experiência do imigrante.

As variações da altura das maçanetas buscam irromper o gesto normalizado social e corporalmente (abrir a porta) da passagem entre um espaço (interior e exterior; antes e depois da imigração) e expor as associações simbólicas entre as fases da vida do imigrante, especialmente a irrupção desse plano X (tempo) e Y (espaço) mencionado por Berger.

O trajeto e narração subjetiva da vida do imigrante sofre uma descontinuidade no momento em que sai de seu lugar de origem. A sequência das fases de sua vida são marcadas pelo choque entre as expectativas/intenções que carrega e a realidade de sua impossibilidade de controlar muitos dos resultados esperados (como a acolhida).

A obra busca destacar — simbólica, espacial e corporalmente —as diferentes camadas sociais, institucionais e simbólicas do processo de imigração — uma sucessão portas que se abrem e fecham.

Berger, John; Mohr, Jean. A Seventh Man. Verso: London, 2010.
Foucault, Michel. Of Other Spaces, Heterotopias Tradução. Architecture, Mouvement, Continuité no. 5 (1984): 46-49.
Ramos, H. Rodrigo. Sobre espaço público e heterotopia. Geosul, Florianópolis, v. 24, n. 48, p 7-26, jul./dez. 2009

Chegar é nunca chegar

Museu da Imigração — Residência Artística
São Paulo, Brasil
2019
Chegar é nunca chegar.
Instalação.

Nico3L •
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